O estudo histórico, teológico e eclesial dos Impérios do Espírito Santo, nos povos cristãos católicos dos Açores é, realmente, interessante e, até certo ponto, único. À luz da história, tudo começa com o monge Joaquim de Fiora e a sua doutrina sobre as três idades da Igreja: a idade do Antigo Testamento, com um Deus juiz, mandão, guerreiro, a impor o “genocídio” (herem, no hebraico) contra todos os inimigos pagãos de Israel; a segunda idade, a de Jesus Cristo, cuja doutrina evangélica fora adulterada pela Igreja; a terceira idade, a do Espírito Santo, a criar no seio da Igreja, vivida e administrada por monges e virgens. Segundo Joaquim de Fiora, as duas primeiras idades estavam ultrapassadas e a terceira surgiria brevemente. Havia que lutar por ela. Nessa Idade Média, - a do feudalismo - havia vários movimentos, fundamentados no evangelho, contra a Igreja Católica do tempo – cátaros, albigenses, etc. Ao espírito desses movimentos juntou-se também um grupo de franciscanos, que faziam de Francisco de Assis, pobre e humilde, um segundo Jesus Cristo. Combatiam a Igreja hierárquica de Papas, Cardeais e Bispos, no meio de luxos e vaidades. O próprio São Boaventura, Geral da Ordem Franciscana e grande teólogo da Igreja, acabou por condená-los, afastando-os da Ordem. No célebre livro “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, o leitor pode descobrir, no enredo, este mundo dos séculos XI-XIII. Os frades pregavam a era do Espírito Santo contra a era do Antigo Testamento e do Novo Testamento. Da verdadeira Igreja, salvava-se apenas Francisco de Assis e os seus seguidores mais radicais. Esta pregação entrou na espiritualidade do povo, ao longo dos anos, e foi rejeitada pelas autoridades da Igreja e dos responsáveis da Ordem Franciscana. Os “terceiros franciscanos” (leigo casados, que seguiam o espírito de Francisco de Assis), espalharam pela Itália, França, Espanha e Portugal esta doutrina. Santa Isabel, rainha de Portugal, parece que partilhava esta doutrina, também como “terceira franciscana”. As “condenações” da Hierarquia da Igreja acabou com esta doutrina, mas fora levada às ilhas dos Açores pelos franciscanos, onde não chegavam os correios das condenações. Assim nasceram os Impérios do Espírito Santo com o aparecimento duma “capela” ao lado das grandes Igrejas, onde se colocava e se coloca a coroa do Espírito Santo, encimada pela pomba e pela Cruz. O povo açoriano bebeu profundamente esta espiritualidade e, por vezes, transformava a Igreja Católica nos Impérios do Espírito Santo. Surgiram festas religiosas e populares, doutrinas e catequeses, paralelas às da Igreja. Só quem é açoriano é capaz de entender estas “duas” Igrejas, duas culturas, dois sentimentos numa só Igreja, cultura e sentimento. Sempre que as autoridades eclesiásticas contrariaram as festas do Império do Espírito Santo acabaram por perder. Hoje em dia, tudo está mais calmo, reinando o bom senso pastoral de parte a parte. E é preciso ajuntar que estas festas também subsistem no Portugal continental, duma maneira geral acompanhadas pelo “pão do Espírito Santo” como símbolo da partilha dos dons de Deus – onde houver o Espírito de Deus tem que haver pão para todos. Que o digam Tomar, Alenquer, Leiria, Caranguejeira e todas as festas do Espírito Santo, desde o Minho ao Algarve.
Este assunto põe o problema da realidade da força e poder do Espírito Santo. Há trinta anos a esta parte, os neopentecostais evangélicos repuseram esta doutrina, confrontando-se com católicos e protestantes históricos. São mais de trezentos milhões (ver a obra de Allan Anderson, El pentecostalismo. El cristianismo carismático mundial, Ed. Akal, Madrid 2007). Dizem, inclusivamente, que entre eles e os carismáticos católicos não há qualquer diferença. Quem é que está na verdade?
A verdade é exposta de maneira clara em S. Paulo, na 1ª aos Coríntios 12, 4-13: “Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; há diversidade de serviços, mas o Senhor é o mesmo; há diversidade de agir, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. A cada um é dada a manifestação do Espírito, para proveito comum. A um é dada, pela acção do Espírito, uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro, a fé, no mesmo Espírito; a outro, o dom das curas, no único Espírito; a outro, o poder de fazer milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas. Tudo isto, porém, o realiza o único e o mesmo Espírito, distribuindo a cada um, conforme lhe apraz. (…) De facto, num só Espírito, fomos todos baptizados para formar um só corpo, judeus e gregos, escravos ou livres, e todos bebemos de um só Espírito.”
A variedade de dons e carismas, como se vê, é uma riqueza espiritual desde que seja para formar um só corpo. São Paulo pensa, ao mesmo tempo, no corpo de Cristo e no corpo da Igreja a viver da força do Espírito. Não existe um sem o outro. É com este critério que devemos entender as diferenças entre carismáticos católicos e pentecostais evangélicos. Mas também aqui, só o Espírito é que pode julgar. Apenas referimos os dizeres de São Paulo sobre os muitos dons ou carismas do Espírito para a formação de um “corpo de Cristo”.
A doutrina de Paulo é mais aprofundada no quarto evangelho ao apresentar cinco vezes a promessa do Espírito (Jo 14, 15-16; 14, 25-26; 15, 26-27; 16, 5-11; 16, 12-15). O Espírito é apresentado como “o outro Paráclito”, “Espírito Santo”; Espírito da Verdade” (14, 16: “e Eu apelarei ao Pai e Ele vos dará outro Paráclito…”, 14, 26: “mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará…”; 15, 26: “Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, que procede do Pai, e que Eu vos hei-de enviar da parte do Pai…”; 16, 13-15: “Quando Ele vier, o Espírito da Verdade, há-de guiar-vos para a verdade completa…há-de manifestar a minha glória, porque receberá do que é meu e vo-lo dará a conhecer…”).
Como se trata de “promessa” a cumprir, os verbos aparecem no futuro temporal. No entanto, em 14, 17, o tempo verbal é presente: “o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; vós é que o conheceis, porque permanece junto de vós, e está em vós”.
Acontece, então, que as promessas do Espírito, já presentes no Antigo Testamento (Is 11, 1-2; 61, 1; Jr 31, 31-32; Ez 37, 14; Joel 3, 1-2), acontecem na pessoa de Jesus (Mc 1, 10 e paralelos) e na pessoa dos baptizados cristãos em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo (Mt 28, 19). A narrativa do Pentecostes, em Actos 2, 1-13, é uma espantosa “encenação” da realidade cristã do Espírito Santo, que os cristãos sentem e vivem. O Espírito Santo é a grande Lei – nova Lei - , diante da qual não há nem judeu nem grego, europeu ou africano, homem ou mulher. É uma verdade divina que completa, definitivamente, a teologia e a cristologia com a pneuma-tologia. E é assim que surge a tensão dialéctica entre a Igreja hierárquica e carismática, tanto no passado, a começar com Montano, já nos princípios do século II, como no presente.
Quem nos deve governar é o Império do Espírito que concilia a utopia com a realidade política, económica, democrática do povo de Deus. É o Império do amor e da partilha, da caridade e solidariedade, que resolve todos os problemas da justiça entre trabalhadores e empregadores, mais ricos e mais pobres, crianças e idosos, hierarquia e democracia.
Pe. Joaquim Carreira das Neves, OFM
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